terça-feira, 19 de janeiro de 2010

VISÃO DE SONHO

Numa manhã de Primavera, com o estio quase a bater à porta, Ela acordou lentamente de um sono sereno e reparador, abriu os olhos e de imediato os fechou, o Sol inundava-lhe o quarto em golfadas de energia. De imediato reagiu: tinha-se esquecido de correr as persianas. Foi um acordar prematuro, que num encadeamento de recordações a fez decidir: é hoje! É hoje o dia em que vou subir até ao cimo da serra! A uma velocidade que lhe não era habitual, preparou-se para a caminhada: sapatos, calções, blusa, chapéu, cajado e uma mochila com água e duas maçãs. Iria sem relógio, sem bússola, sem pressas…
Pôs-se a caminho a partir do sopé, evitou a estrada e entrou em trilhos, por vezes a corta mato. E foi subindo a pouco e pouco, fazendo pausas, para ouvir os pássaros, o restolhar das folhas, a brisa que em pequenas rajadas lhe beijava a nuca. Parava para ler nomes, iniciais entrelaçadas e juras de amor, gravadas nos troncos de alguns plátanos. Como eram doces os cheiros que tinha dificuldade em isolar, que pouca importância tinha a pequena “mordidela” das urtigas que lhe provocava prurido nas pernas nuas. Colheu uma flor, de cor lilás, que com gestos suaves, colocou na fita do chapéu, revirou uma pequena pedra e seduzida, viu a azáfama da pequena fauna que habitava o solo por baixo dela, suspirou, sorriu, respirou fundo e retomou a caminhada. Estes gestos, estes movimentos, repetiram-se, uma, duas, várias vezes, ora fechava os olhos e tentava decodificar os sons que ouvia, ora os abria bem arregalados qual Lobo Mau, ora cantarolava para ouvir a própria voz,… o tempo foi passando, o sol subindo na copa das árvores e o seu envolvimento com a Natureza era cada vez maior, num crescendo como o teclar num piano a terminar numa explosão de sons fortes e ecoantes . Sentia-se como parte ínfima mas integrante dessa Mãe generosa! Quando menos esperava, de tão embrenhada que ia na contemplação serena de tanta beleza, alcançou um vazio. Respiração suspensa, à sua frente abria-se uma visão de sonho, sonho nunca sonhado, … ao longe céu e mar fundiam-se, como só se fundem os corpos de dois amantes, num bailado pleno de sensualidade e de volúpia, a seus pés lá bem em baixo, o mar amorosamente deitava-se sobre a areia e beijava as rochas, num beijo rápido, num beijo demorado, num beijo salgado, num vai e vem contínuo e ritmado, como uma sinfonia interpretada por instrumentos de corda.
Sentou-se numa rocha à beira do penhasco e perdeu-se nos seus pensamentos, pensamentos plenos de estupefacção, que em turbilhão lhe enchiam a mente. Há quanto tempo que não se sentia, tão segura, tão calma, tão grata à Vida por lhe estar a dar a oportunidade de comungar com a Natureza esse tempo, esse espaço, essa beleza, essa plenitude, … todo esse contraste com aquilo que lhe era permitido captar na vida real, na vida do seu dia-a-dia. E pensou, sem pena, sem dor, como gostaria de ser poeta, de ser pintora, … porque só assim conseguiria imortalizar, num poema ou numa tela, todas essas sensações, todas essas imagens, que se lhe ofereciam aos seus sentidos, sentidos de ver, de cheirar, de tocar, de ouvir e porque não, de saborear…




Texto publicado em resposta ao desafio BELEZA para a Fábrica de Letras

29 comentários:

  1. Excelente passeio, que me fez esquecer um pouco a chuva que insiste em ficar.

    "Fábrica de Letras" (interessante iniciativa) um pouco idêntica à "Fábrica de Histórias".

    Que as palavras e os sonhos não acabem ;)

    Tudo de bom.

    ResponderEliminar
  2. Lindo o texto, tão cheios de detalhes, dá para imaginar exatamente cada momento !
    beijo grande.

    ResponderEliminar
  3. Levaste "uma mochila com água" e aguentou-se? Lol
    Gostei muito do texto. É a inveja pura e dura da tua escrita que me faz meter-me contigo.

    ResponderEliminar
  4. gostei muito do texto, está muito bonito... :-)

    ResponderEliminar
  5. Querida, Maria Teresa!

    É um deleite ler os seus textos, e nos provoca alguma "dor" (não do cotovelo) por não sermos capazes de o fazer como o faz!

    Meu Deus! Sonhar é bom, com a condição, porém, de que se não tenham sonhos maus!

    Um beijinho sonhador!

    Renato

    ResponderEliminar
  6. Afinal, aquele quadro de que falou num post anterior não foi o único que pintou...
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  7. Mais um belissimo texto!
    Parabéns Maria Augusta
    Bjs
    G.J.

    ResponderEliminar
  8. Quem escreve assim...é escritor!!

    Beijinhos

    ResponderEliminar
  9. Que belo texto, já pensaste em escrever um livro? :) Beijinhos belos!

    ResponderEliminar
  10. Ora, Maria Teresa, se as sensações foram todas vividas, o as imortalizar é de somenos... está-se plena!!!

    Parabéns pelo excelente texto...eu subi também a serra.

    Beijinho

    ResponderEliminar
  11. Que lindo texto. Que linda vista deve haver no topo da Serra (de Sintra?). Partilhei esta caminhada com imenso prazer, com alguma sede, logo, logo saciada pela descrição dos sentidos plenos e da leveza da alma alcançada pela vista maravilhosa. Agora, cuidado a descer a Serra!:)Um beijinho

    ResponderEliminar
  12. maria teresa:

    Quão maravilhoso e sublime está este beijo à Natureza. Será que essa visão paradisíaca seria igual se se deparasse lá do cume da montanha com as ruínas de algum Port au Prince?!

    Será que a Mãe Natura precisa de ser beijada assim para não exteriorizar as suas raivas interiores?!

    Mãe Natureza, faço-Te um apelo: olha para este texto e apazigua-Te com os seres humanos! Não mais vomites lava, não mais lances tufões, tsunamis, terramotos!

    Mãe Natureza, esta oração merece-o!!!

    ResponderEliminar
  13. Eu já a "ver-te" de calçonitos e mochila às costas a trepar serra acima, "puxa que puxa", e vai-se a ver, foi um passeio na tua saleta em frente ao teclado. Um conto para um concurso na Fàbrica de letras!
    Mas muito bem fabricado, digo eu. Um quadro bem pintado, como já disse outro comentador. Mas isso, que escreves bem e fluentemente, já nós que aqui costumamos vir, sabiamos.
    Venham mais.
    Bjo.

    ResponderEliminar
  14. E que bom que era ser Ela, em plena primavera, e acordar com o sol a entrar pela janela =)

    ResponderEliminar
  15. Também gosto desse mcontacto sereno com a Natureza. Dá-me uma paz imensa...

    ResponderEliminar
  16. QUERIDOS AMIGOS ESTE TEXTO "VISÃO DE SONHO" TEVE POR BASE DOIS PASSEIOS POR MIM REALIZADOS HÁ TRÊS ANOS. JUNTEI A DESCRIÇÂO DOS DOIS PARA DAR UMA “RESPOSTA” MAIS COMPLETA, MAIS ENRIQUECEDORA, AO DESAFIO FEITO PELA FÁBRICA DE LETRAS.TODAS AS SENSAÇÕES DESCRITAS FORAM VIVIDAS POR MIM.
    ACTUALMENTE ESTOU A TENTAR ESCREVER FICÇÃO MAS TENHO MUITA DIFICULDADE EM FAZÊ-LO, NÂO CONSIGO DESCREVER SENTIRES QUE NUNCA TENHA EXPERIMENTADO.
    O TEXTO PUBLICADO SOBRE A “LUXÚRIA” FOI A 2ª VERSÃO, a 1ª DEPOIS DE A LER VI QUE TINHA TUDO SOBRE A MINHA VIDA SEXUAL, NÂO ME QUIS EXPOR TANTO. POR ESSE MOTIVO ENTREI UM POUCO NA FICÇÃO. FOI UM TEXTO MUITO PENSADO, O QUE NORMALMENTE NÂO FAÇO, ESCREVO DE ACORDO COM AS MINHAS MEMÓRIAS.
    JÁ “INOCÊNCIA” ESCREVI-O “DE CORRIDA” SEM NUNCA TER VIVIDO EM ÁFRICA, ESSE SIM FICCIONADO TOTALMENTE, SAIU COMO SE ALGUÈM ME ESTIVESSE DITANDO AS PALAVRAS.
    É FÁCIL SENTIREM O QUE DESCREVO EM “VISÃO DE SONHO”, BASTA VIREM ATÉ À SERRA DE SINTRA E SUBIREM UMA DAS SUAS ENCOSTAS; NÂO CUSTA TANTO ASSIM… OU IR ATÉ UMA DAS SUAS ARRIBAS, JUNTO A UMA DAS MUITAS PRAIAS DA ZONA E, DEIXAREM-SE ABRAÇAR PELA BELEZA NATURAL DO SÍTIO.

    OBRIGADA PELOS VOSSOS COMENTÁRIOS TÂO GENTIS E AGRADÁVEIS

    BEIJINHOS EMBRULHADOS PARA TODOS COM PAPEL DA COR DO MAR E DO CÉU QUANDO SE FUNDEM NO HORIZONTE

    ResponderEliminar
  17. Cheguei atrasado?
    Vá lá, é só desta vez.
    Ser poeta e pintora. Mas este texto é, todo ele, um quadro poético, pintado com as cores vivas de memórias bem guardadas. Tão vivas que me levaram no passeio. Gostei de o ler.
    A Fábrica de Letras é uma sortuda por ter quem assim escreva.
    BJS

    ResponderEliminar
  18. Gostei muito da escrita, sem dúvida refrescante como este belo espaço, pretendo voltar.

    Abraço

    ResponderEliminar
  19. Querido Carlos chega sempre a tempo e é com muita honra que o recebo, gosto muito de saber a sua opinião.
    E a Fábrica não tem imensa sorte de o ter a si?
    A "casa" ainda não fechou (fez-me rir1), aliás nunca fecha, a justificação que dei, foi porque sim...Eu não escrevo por encomenda, achei que juntando estes dois "relatos" podia "enviá-los" para a Fábrica (aliás é o 3º que envio).

    Beijinhos embrulhados para si

    ResponderEliminar
  20. Querido Sam obrigada pela sua visita e por ter deixado o seu "pensar".
    Volte sempre, estarei cá para o receber.
    Beijinhos embrulhados para si!

    ResponderEliminar
  21. Que belo texto, tem alma de escritora...

    Bjokas

    ResponderEliminar
  22. Mari Teresa

    Gosto do estilo da tua escrita!
    Belos textos.

    Beijos
    AL

    ResponderEliminar
  23. Querida Anira só alma... Sou apenas uma mulher dedicada à Ciência que gosta de ecrever.
    Beijinhos embrulhados para si!

    ResponderEliminar
  24. Querido A.S. obrigada pelas tuas gentis palavras.
    Tu é que tens belíssimos poemas! "Invejo-te"
    Beijinhos embrulhados para ti!

    ResponderEliminar
  25. Olá Maria Teresa
    como me canso muito a subir, só hoje aqui cheguei...
    Mas a tempo de sentir uma dupla sensação e de sinal contrário: por um lado como gostaria de fazer esse trajecto,como o descreves, e principalmente, lá do alto, descansar extasiado com a beleza da paisagem e pensar nas coisas da vida; o outro, de sentido contrário, de saber que jamais poderei fazê-lo, pois subir algo é uma coisa que me custa muito e é algo que já pertence ao passado (recordo uma subida memorável do Cântaro Magro, na Serra da Estrela, desde cá bem em baixo junto da nascente do Zêzere, até mesmo ao cimo, quase perto da Torre, o sítio mais alto de Portugal).
    Um texto que além de belo revela uma escrita muito cuidada, o que não é novidade para mim.
    Excelente, sob todos os pontos de vista.
    Beijinho.

    ResponderEliminar
  26. Querido Pinguim, não o fizeste agora mas já o fizeste "ontem" e as "visões" que deves ter tido na Serra também devem ter sido memoráveis.
    Beijinhos embrulhados para ti!

    ResponderEliminar
  27. Sublime...
    Parabéns!
    Belissimo texto!
    Bjs, dos Alpes.

    ResponderEliminar
  28. Querida Flor muito obrigada!
    Beijinhos embrulhados para si!

    ResponderEliminar
  29. Afinal, não se pode aplicar a máxima "nem às paredes confesso..." .... Malditos Quadros ! :))

    Belo texto....grande sensibilidade..

    Beijinhos

    ResponderEliminar