Corria o ano de 1755, poucos dias antes do terramoto que destruiu Lisboa, quando se estreou na Ópera do Tejo* esta obra de reportório barroco italiano de António Mazzoni, baseada num libreto de Pietro Metastasio por “encomenda” de D. José I, como convinha à corte e à tradição musical dominante em Portugal, nesta época.
Duzentos e cinquenta e cinco anos depois volta à cena, no Centro Cultural de Belém e apenas com duas apresentações. Tive o privilégio de assistir à estreia (paguei bilhete)
Argumento:
Berenice, princesa do Egipto, viaja para a Macedónia para casar com o rei Antigono, depois de ter recusado a mão de Alessandro, rei do país vizinho, Epiro. Demetrio filho predilecto de Antigono está apaixonado por Berenice, este desconfiado ameaça-o com o exílio, ao mesmo tempo Alessandro invade a Macedónia para ter Berenice de volta.
A história tem um final feliz (lieto fine), Berenice casa com Demetrio, como convém a uma belíssima história de amor , em que o amor filial, a nobreza de carácter, a capacidade de renúncia, a benevolência,… estão bem presentes.
Figuras em palco: Antigono (tenor), Berenice (soprano), Demetrio (soprano), Alessandro (contratenor), Ismene (filha de Antigono –soprano) e Clearco (capitão à ordem de Alessandro – soprano).
Descrição (muitíssimo condensada) do que vi, ouvi e senti:
-Clearco e Demetrio são representados por mulheres já não existem os castrati**, estraga um pouco a visualização das cenas, mas em ópera é mesmo assim, primeiro o tipo de voz depois o “físico” adaptado à personagem.
-A cantora que representa Berenice é enorme, com uma caixa torácica (leia-se maminhas) bem desenvolvida, já com alguma idade, a que personifica Demetrio é pequenina e jovem (tive dificuldade em “arrumar”na minha cabeça, um par tão apaixonado com aspectos físicos tão díspares)
-O cenário está em constante mutação, efeitos produzidos através de um processo digital feito no momento e ao "sabor" do fundo musical. O processo usado torna-o fantástico, “demolidor”,…
-As vozes são divinais! Excelentes cantores!
-A movimentação das personagens é praticamente inexistente, cantam quase sempre a solo, embora não estejam “sós” em cena.
-Os figurinos são de José António Tenente muito sóbrios e de acordo com a época. Bom trabalho!
-A orquestra residente no CCB “Divino Sospiro” (fundada por Massimo Mazzeo), dirigida pelo maestro Enrico Onofri (que parece uma salsicha preta com pernas e braços, … não me consegui libertar desta imagem) foi magistral…
-Estive no CCB cinco horas, 30+20 minutos de intervalo, 3 h 40m de espectáculo e ½ hora antes do início porque nunca chego atrasada.
Mas valeu a pena!
Uma obra que não vou esquecer…
Ainda não percebi porque foi apresentada em apenas dois espectáculos!
*Este teatro “viveu” muito pouco tempo, antes de apresentar Antigono, tinha apresentado outras duas obras, foi totalmente destruído pelo terramoto.
Lisboa voltaria a ter um teatro de ópera, o São Carlos, quatro décadas depois.
** Os castrati surgiram por volta de 400 d.C. Mas a partir do início do séc. XIII até ao século XVI “desapareceram”. Neste século reapareceram em Itália, havia necessidade de vozes agudas nos coros das igrejas, alguns jovens do sexo masculino com gosto pelo canto, pobres, órfãos, … eram castrados (o recrutamento destes jovens para o coro da Basílica de S. Pedro, foi aprovado pelo papa Sisto V).
Nas óperas de Handel os castrati eram presença obrigatória, eram compostas de propósito para eles.
Nos dias de hoje tal prática é impensável, esses papéis são desempenhados por cantoras ou contratenores